sábado, 31 de outubro de 2020

O TOCHA

 

As sombrias sombras da alvorada já não eram bem
Eram manchas de tristeza na lama da vida
Tortuosas eram as ruas com flores silvestres na ladeira
Pingos de vida aqui e acolá resmungando torcidas descaradas
Ele era o Tocha e vivia nas paredes esconsas do casario
Como desperdício misero despejado.
Tiraram-lhe a honra a alma de ser e os sonhos
Justiças cegas com mãos opulentas. e espadas vergonhosas
Deram-lhe uma pensão feita de ar e vento
De gelos e de mil e uma tormentas
Mas não lhe tiraram o seu "Eu", Tocha!
Que vivia nas paredes esconsas do casario.

Jorge d'Alte

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

NOITES DE CETIM

 

Em noites de brancos cetins
Nas camas ricas de dossel dobrado
Na leveza da etérea alma
Trago-te até mim.
Paixão de encanto em tons de violetas
Cheiro-a com meus lábios de fome
Rolo-a agarrada a mim
Doce carraça que me pica e espicaça
Não vou dizer que subimos ao céu
Esse lugar onde as pessoas se ajoelham por pecar
Subimos ao alto onde tudo é eternidade e descoberta
Descemos tocando os túmidos com dedos de preces
Beijamos a promessa de que o mundo será nosso 
Depois da fantasia.

Jorge d'Alte

terça-feira, 27 de outubro de 2020

E VIVO

Vou em busca do vento para lhe tocar no olhar
Sem toques de afagar que posso eu fazer?
Corro nos pastos como cão em busca das palavras
Tenho-as cá dentro mas não as sei pronunciar
Colho as flores abertas como aberto é o sorriso dela
Colorido e atraente com os seus dentes alvos
Sorriso que me quis quando mais dele precisei
Sorriso que me enfeitiça, castiga e engana
Pois não era mais do que uma miragem num espelho de água
Corro prantos na noite deslavada
Sem sombras dela nem murmúrios no luar
Amo-a como minha, mesmo quando a vejo no colo dele
Porque não me consigo desligar?
Porque me vergo assim?
E de memória em memória me enraízo
Parte de mim crucia-me
Parte de mim secou
E quando a vejo passar de cabelo ao vento
Ai meu olhar de lágrimas vãs, e desperdiçadas
Estugo meus passos na sombra dela 
Sinto as fragrâncias evoladas na brisa 
Inspiro e vivo.

Jorge d'alte


domingo, 25 de outubro de 2020

POR CIMA DAS MONTANHAS...

 


Por cima das montanhas
Dos rudes alcantis
Das nuvens e do mar
Muito acima do sol
Muito acima do luar
Para além dos confins
Paira o espírito meu
Na eterna imensidade
Longe elevo o meu voo
Na alva luz do pensamento
que paira sobre a vida
E saibas compreender
A linguagem da flor
E das coisas da vida.


Jorge d'Alte

A NOSSA VEZ

 


Vamos dormir
Fechar os olhos
Breve sorrir
Estamos a sonhar
O rosto é lindo de olhos que eu amo
Papá Mamã no escuro chamo.
O sonho é quente de amor sem fim
Dentro de um corpo sempre a mudar.
Já penso e falo
Já posso andar
Com a vossa ajuda o trilho vou percorrendo
E os escolhos da vida
Pouco a pouco vou compreendendo.
Vamos dormir
Fechar os olhos
Breve sorriso
Estamos a sonhar.
O sonho é lindo de números e letras
Para trás ficaram papas e chupetas.
O sonho é lindo feito dia a dia.
Sonho é querer é luta é dor
E na bruma da noite uma flor se abriu.
Rosto amante raiado de amor.
O sonho é lindo
Cheio de quês
Juntos seguimos
É a nossa vez.


Jorge d'Alte








quarta-feira, 21 de outubro de 2020

PEQUENA LARANJA

 



A pequena laranja rolou aflita apertando seus lindos gomos como coração
Sentiu a leveza do rolar até á berma do sentir
Não sabia se chorar se rir porque nunca sentira nada assim.
Aliás nunca sentira nada de nada, nem sabia o que era sentir.
Afinal sentiu que sentira num dia de muitos dias.
Surpresa, apertou mais os seus gomos tenros e túmidos, num gesto desmedido de amor
Interiorizou o seu corpo roliço depois de ter sido flor.
Recebera o seu sêmen de pólen num entardecer de Agosto
Quando acenara as suas pétalas pintadas em seda.
Recordou esse momento de ardor de paixão
Beijou-o como só as flores sabem beijar colorindo os seus lábios com as cores do arco-íris.
Soubera que já era mais do que era quando as sementes cresceram.
Guardara-as dentro de si, para si, egoísta, sabendo que já não eram mais dela.
Por isso caíra lá do alto depois de se despedir das folhas que como berço a protegiam.
Sentiu mãos suaves pegando nela, despindo-a, soltando as suas sementes no vento da sorte.

Jorge d'Alte

sábado, 17 de outubro de 2020

DIVERTIMENTO

 


A noite estava esfarrapada de vultos estendidos na areia encruada
Tinham por companhia garrafas atiradas ao calha
E músicas de coro mal tocadas por dedos desatinados.
Mal sabiam eles que confraternizavam com um vírus sedento de multiplicações.
Não era matemático mas advertia na tosse que os acometera, primeiro um depois já eram
De vez enquanto num rasgo de mentes onde as sombras mudavam, um alerta
Encontraram-nos de manhãzinha combalidos sofrendo em corpos sem ar feitos de dor.

Jorge d'Alte

terça-feira, 13 de outubro de 2020

LÁ!

 



Lá, naquele mundo de luzeiros onde as almas voam
Como pétalas retiradas á vida
Choram pelos que vivem numa saudade sem fim.
Seu corpo amargo  revive tempos idos
Tempos em que eram o que eram
Frutos de sonhos criados e vividos na lonjura.
Sem olhos e olhares procuram almas que amaram
Almas que os deixaram esquecidas nas memórias
Sentem que os entes estão ali 
Como faces coladas num vidro que não há
Sopro húmido onde escrevem
Palavras que já não fazem sentido...
Lá nesse mundo talvez as almas se avivem
E nos deixem perceber que afinal Deus está ali
Sofrendo por elas.


Jorge d'Alte

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

COMO POSSO NÃO SORRIR

 

Caminhava nas memórias encimando as mais belas.
A janela emoldurava-a recortando-a em doces mates de róseos.
Peles que eu afaguei nas noites passadas de verões lunares.
As estrelas brilhavam aguerridas piscando como pulsares
Mas eu tinha-a como vida da qual não me consegui despegar
Fora num dia parecido com este...como posso não sorrir?
As sombrias sombras da noite ainda não o eram bem
Os nossos olhos traçaram a ansiedade e vulnerabilidade
Curvaram os corações na atração chutando para longe o medo e a incerteza
E ali estavam sedentos lábios de rubi que osculei hesitantemente.
Tínhamos apenas os anos tenros que tínhamos
Sabíamos que gostar era assim, o que não sabíamos era que era tão forte.
O medo gelou-nos no milésimo e no milésimo soubemos que eramos a vida um do outro
E fomos e somos como mar que se agarra á terra
Tantas as dores sofridas que deixamos para trás mas que nos roeram e feriram a pele
Tantas coisas bonitas que nos fizemos, raízes que nos prenderam, faróis que nos guiaram.
Como posso não sorrir se estás aqui ao meu lado?
Peles de róseos mates enrugadas quanto te zangas e lisas quando me sorris.
Senti aquela mão que tantas paixões conquistou de mim tocando-me serena e tremente.
A doença colhera-a no seu quintal de memórias retirando-lhe o reconhecimento.
Todos os dias me vai esperar á porta da rua...
Mas que interessa isso?
Ela está aqui e eu amo-a!


Jorge d'Alte

 


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

MOMENTO

 

Tinham chegado ainda a madrugada se via lenta
Cortando sombras e redutos de escuridão.
A luz que morrera no dia dantes
Ressurgia teimosa pelo alto dos montes
O ribeiro tortuoso espelhou sereno
Como serenos eram os olhos deles.
Afinal a morte cheirava-se por ali
Difusa nas dores dos que gritavam ainda.
Ele era como Ela " a morte"
Massacrara a família com palavras escritas na raiva
Fugira e agora matava, porquê meu Deus?
Nunca conseguira perceber porque morria ainda
O enlace fora longo e auspicioso
Com beijos cheios de ela e dos putos birrentos.
Tinham cantado Natais de família e erguido taças ao novo ano.
Mas este veio astuto e dissimulado arrancando a verdade das almas.
Nada restara...
Somente a saudade ficara engordurada no corpo dele.
Pensara que a água das orações o libertaria dessas memórias
Mas por mais que lavasse, a espuma voltava vívida.
Escutou um barulhar seráfico de uma arma a engatilhar...
Percorreu essa luz onde ela corria com ele
Levando os putos misturados nas sombras.


Jorge d'Alte


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O SABOR DA CORDITE

 

Hoje cheguei a terras de altos e baixos.
Derretendo-se no cimo dos cumes carecas a borrasca assustava.
Vem sorrateira na voz do vento e em vez de murmurar ruge de insatisfeita
Com mil raios faz o trovão, essa voz que assusta meninos e o ancião.
A minha soberba deve ter atiçado os gelos celestiais que desciam desse céu de plúmbeos mates tentando-me dardejar
Recolhi-me no meio das preces rezadas em coro por vozes velhas, roufenhas, e pequeninas.
O medo pairou por ali aflito e angustiado
Afinal a morte passara bem perto deixando no ar o sabor da cordite.

Jorge d’Alte